sexta-feira, 4 de abril de 2008

Quem é essa mulher?


A jovem mãe de seis filhos homens e ao lado do marido que se vê nesta foto é Heloneida Studart, cearense orgulhosa de sua condição de nordestina, partiu desse mundo em 3 de dezembro de 2007, aos 82 anos. E no meio de tantas idas, mergulhei sobre dores familiares, inclusive as minhas que havia perdido minha mãe 15 dias antes, busquei em fotos e caixas e papelão algumas histórias de Helô, que morreu querendo fazer um blog, agora ela terá um para contar sua história.Todas os textos, fruto de pesquisa e de entrevistas, podem ser reproduzidos, sem fins comerciais, desde que citada a fonte. Nesse caso, pede-se que se encaminhe uma solicitação para nicarodrigues@globo.com
A reprodução de fotos, no entanto, só pode ser feita com autorização da família Studart. Os créditos das fotos desta pesquisa pertencem ao acervo de família, do mandato parlamentar e do acervo de divulgação da Alerj, no caso das fotos do velório.

A história de Helô, por ela mesma

Em pesquisa realizada nos arquivos de heloneida  descobri este artigo não públicado que oonsidero a melhor síntese dela por ela mesma. Ninguem pode traduzir melhor do que Heoneida sua própria históra.

“Cresci até o sete anos no casarão do meu avô, frente ao Parque da Liberdade, na rua do mesmo nome, em Fortaleza. ( ah, liberdade, aprendi o teu nome, antes mesmo da maioria dos outros). O casarão tinha seis alcovas e sete empregadas na cozinha enorme. Elas vinham da fazenda do avô, cada vez que minha tia mais velha que morava com ele tinha filho; e ela teve sete filhos, um por ano, enquanto viveu seu marido. As moças vinham como amas-deleite, pois minha tia era dada como frágil e ficavam até que as levasse algum casamento ou a morte. “Da minha casa não sai amigado”, decretava o avô, homem muito católico. Tão católico que, na sala do casarão, pontificavam três retratos: o do Papa, o do Barão de Studart, irmão do avô e da falecida esposa dele, a sempre chorada vó Júlia.

Também havia um piano de cauda alemão onde todas as minhas primas louras aprenderam a tocar e eu , não. Estudei no colégio Imaculada Conceição, colégio em que estudavam as meninas das “velhas famílias”, as famílias novas-ricas deviam se contentar com o colégio das Dorotéias. Ali aprendi a comer com dois livros debaixo dos braços para “não abrir as asas” durante o almoço, a utilizar todos os talheres, inclusive aquele garfinho de “escargot”, embora nunca tenha visto um deles, no Ceará. As freiras queriam me transformar numa dama de fino trato e se não conseguiam, como explicavam à minha chorosa mamãe, devia ser por causa daquela família revoltosa do meu pai, os Bezerra de Menezes, que forneceram os mais destacados abolicionistas. republicanos do Ceará, sendo que um deles até foi condenado à morte pela Coroa.

Quando fiz sete anos, meu pai finalmente rebelado, declarou que não queria mais viver em clã e carregou a família dele para uma casa simples de buganvílias. Era a minha oportunidade de cair na classe média, mas não caí. Aos oito anos, organizei na paróquia uma turma de 40 empregadas domésticas analfabetas, para ensinar-lhes a ler. Subia num caixote para alcançar o quadro-negro. E aí fui sem nunca acabar de convites para comer um mugunzá, num bairro da periferia e conviver com os dramas da criança doente que não tem direito a médico, do homem que trabalha sem folgar e sem carteira assinada, da falta de escola, da falta de tudo.

Nas férias, ia para o Iguape, praia do distrito de Aquiraz,onde meu avô, além de dono de coqueirais, era dono da única casa de tijolo e telha. As outras, as casas dos pescadores, eram de palha,com chão de areia. Era ali que eu me metia, horas e horas, tentando aprender a fazer renda de bilro, comendo algum pirão de peixe e ouvindo as historias de dor e de coragem Um menino tinha morrido por ter espetado no dedo um espinho de mandacaru. O outro de “uma doença de menino “ mesmo ( desinteria). As jovens mães, velhas aos 25 anos diziam:”Dos sete que eu tive, só criei três”. E fora todos esses, ainda havia “os pobres do meu pai” que não saiam da porta da nossa casa, pedindo para ele aviar uma receita, aplicar uma injeção, doar dez quilos de farinha.

Por tudo isso, mesmo tendo nascido e crescido na falsa aristocracia e depois vivido de salário toda a minha vida o que me colocaria na classe média, numa me senti pertencente a uma ou a outra. Virei socialista antes de perder os dentes do sizo. Por isso, posso citar o cronista: “Ai de vós, conservadores. Pagarei vossos pecados do Leme ao Leblon”. Porque o peão que nos governa não será aviltado como Juscelino, não dará tiro no peito como Getúlio, nem será escurraçado como Jango, ele prevalecerá”.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

A literatura e o jornalismo como vocação

O amor às letras começou cedo. Aos 14 anos, Heloneida já arriscava seus poemas nos cadernos. Em um deles, aproveitou as folhas não usadas por sua mãe, Edite, que escrevia seus rascunhos com cartas de amor para o marido, Vicente. O mesmo hábito da mãe acompanharia Heloneida até o fim da vida. Ela sempre preferia escrever seus textos à mão, praticamente sem rasuras, tinha o chamado texto final, um privilégio de poucos. Mesmo tendo usado máquina de escrever quando era jornalista na redação, na hora de criar os romances escolhia sempre os cadernos como companheiros. Ensaiou várias vezes aprender a usar o computador, mas desistiu no meio do caminho.
Trabalhou no Correio da Manhã e no Diário de Notícias, mas foi na Revista Manchete, da Bloch Editores, no início dos anos 70, que se destacou ficando durante oito anos como redatora e repórter. Com o fim do regime militar, a escritora-jornalista lançaria o que chamou de “Trilogia da tortura”: O pardal é um pássaro azul (que já foi traduzido em cinco idiomas); O estandarte da agonia (inspirado na vida de sua amiga Zuzu Angel); e O torturador em romaria.
Em 1974, Heloneida lança o livro “Mulher objeto de cama e mesa”,vendendo milhares de exemplares ao longo de muitos anos. Foi uma revolução para a época, quando muitos assuntos eram tabu na sociedade, como a pílula anticoncepcional e a luta pela ampliação do mercado de trabalho para as mulheres. Com o livro, Heloneida carimbava seu passaporte definitivo para o mundo do feminismo. No ano seguinte, quando houve a Conferência Internacional, no México, ela escreveu a peça “Homem não entra”. Como o próprio nome já indica, só aceitavam mulheres na platéia. A peça foi escrita por Helô e Rose Marie e tinha a atriz-radialista Cidinha Campos, que ainda não sonhava ser deputada, como protagonista. Foi um sucesso em todo o País.

Nem mesmo no parlamento descansou de sua atividade literária: abriu a Alerj ao povo ao escrever peças, de exibição gratuita, que levaram mais de 40 mil pessoas ao prédio do Palácio Tiradentes, sede do legislativo. E seguindo a veia jornalística, criou o projeto do canal legislativo, a TV Alerj, para dar transparência aos trabalhos dos deputados.

Em 2005, Heloneida teve a alegria de ver dois livros seus, de maior sucesso no Brasil, serem editados na França: “Pardal é um passaro azul” e “O Selo da Despedidas”. Mas a escritora deixou dois projetos inacabados: reescrever o livro “Deus não paga em dólar”, retirado das livrarias na época da ditadura militar, e escrever o livro “Luz que se apaga”, cujo personagem principal sofre do mal de Alzheimer, doença que acometeu o irmão da autora. Em relação ao primeiro livro, o escritor Francisco Orban, filho de Heloneida, conseguiu a promessa de uma editora em Paris de reeditá-lo em breve.

Como publicou, em 2005, um dos jornais mais tradicionais do mundo, o Le Monde, Heloneida Studart foi, ao longo dos seus 82 anos de vida, “uma matriarca subversiva das letras brasileiras”, por sua literatura regionalizada e profundamente marcada pelas questões sociais. Ela transgrediu também ao fugir dos padrões e das convenções de quem esperava que fosse mais uma mulher destinada ao casamento e à família. Contrariando os que pregam a luta entre sexos como uma das bandeiras do feminismo, pode-se dizer que Heloneida subverteu também neste quesito quando avaliou o papel da mulher neste nosso século:

terça-feira, 1 de abril de 2008

UMA MULHER COM MUITAS IDENTIDADES...

Antes de entrar para vida pública pelas mãos do MDB, em 1978, Heloneida já trabalhava na área literária, escrevia livros e foi jornalista dos tempos áureos da extinta Manchete. Depois, tornou-se também sindicalista, com atividades no Senalba, o sindicato dos escritores, quando foi presa pela ditadura. Mas dentro de tudo o que fez, do que mais se orgulhava era de ter uma carteira de trabalho. Na vida parlamentar, teve quatro mandatos e, mesmo conquistando 16 mil votos, não conseguiu atingir o quórum necessário na coligação do seu partido para voltar a ocupar a cadeira de deputada estadual. Com essa derrota, deixou inacabado o projeto de fazer na Assembléia um centro cultural.

MOMENTOS DA PETISTA E PARLAMENTAR




Heloneida soube honrar outra carteira, às vezes mal usada por muitos, a de parlamentar. Criou inúmeras leis, presidiu comissões e teve destaque na mesa diretora da Casa, não apenas como deputada petista, mas como vice presidente responsável por decisões executivas importantes, como a de criar uma TV para que o parlamento ficasse mais democrático e transparente.

Criou a TV Alerj, mas logo perdeu o controle da sua direção para o que ela considerou um golpe dos esquemas partidários de legendas que comandavam a casa e não tinham experiência e a estatura jornalística necessárias. Como se diz no ditado popular, "cabrito bom não berra", Heloneida calou-se, deixando o projeto da TV para que a opinião pública o julgue no tempo certo. A iniciativa pioneira, no entanto, foi tomada pelas suas mãos, com o apoio da bancada do PT.
Com a derrota por pouco na eleição para deputada em 2006, ela foi convidada para a criação de um projeto que sempre acalentou: um centro cultural, que levaria ainda mais o povo ao legislativo. Heloneida já contava com experiência anterior, na gestão do presidente Sérgio Cabral, quando criou na Alerj e conduziu um projeto teatral que levou peças gratuitas sobre a vida política brasileira ao saguão do legislativo, surpreendendo pela grande adesão do público. Mas o seu sonho permaneceria inacabado, interrompido por sua morte numa operação do coração que acabou mal sucedida.